Dezembro 2021
Um vírus pode causar impacto na atmosfera? Por mais estranha que seja essa pergunta, a resposta é que sim. A pandemia de COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, produziu mudanças temporárias muito profundas no cotidiano de muitos seres humanos, que acabaram impactando a atmosfera. Neste caso, vamos falar sobre como o COVID-19 pode causar uma redução no número de descargas atmosféricas em algumas regiões do mundo.
Em primeiro lugar, devemos ter algumas noções básicas sobre como as nuvens que subsequentemente produzem os raios são eletrificadas. As nuvens são feitas de partículas chamadas hidrometeoros. Os hidrometeoros são partículas de água em forma de gotas, gelo, neve ou granizo que não param de se deslocar à mercê das fortes correntes de ar presentes nas nuvens. Nessas viagens, os hidrometeoros colidem uns com os outros e ficam eletricamente carregados. Depois de um tempo, uma camada carregada positivamente de hidrometeoros e uma camada carregada negativamente se formam na nuvem, como um grande condensador. Um campo elétrico é então criado entre as duas camadas que, se atingir um valor limite conhecido como campo de decomposição, dá início a uma descarga elétrica. Já temos um raio!
Francisco Javier Pérez Invernón
Institut für Physik der Atmosphäre, Deutsches Zentrum für Luft- und Raumfahrt, Oberpfaffenhofen, 82234, Germany.
Mas, como o COVID-19 pode ter influenciado tudo isso? A resposta está nos aerossóis. Aerossóis são pequenas partículas em suspensão no ar, que podem ser poeira, areia ou partículas emitidas por meios de transporte, indústria ou outras atividades humanas. Essas partículas geralmente são tão pequenas (mesmo abaixo de 10 mícrons) que podem subir até as nuvens, onde desempenham um papel muito importante na evolução das nuvens. Os aerossóis atuam como núcleos de condensação para as gotículas de água. Como eles fizeram isso? Em seu movimento através da nuvem, eles se juntam aos pequenos hidrometeoros que mencionamos anteriormente, produzindo um fenômeno chamado coalescência. Ou seja, eles “pegam” e reúnem pequenas gotículas de água para formar gotas maiores. Dependendo das características dessas gotas finais, haverá mais ou menos eletrificação na nuvem e, portanto, haverá mais ou menos raios na tempestade. Podemos então esperar que uma mudança na quantidade de aerossóis que os humanos emitem possa acabar afetando o número de descargas atmosféricas que são produzidas em uma tempestade. Em princípio e até certo limite, uma diminuição do número de aerossóis nas nuvens significa que as tempestades produzem menos descargas atmosféricas, de acordo com estudos anteriores.
Pérez-Invernón et al. (2021) analisou o número de descargas atmosféricas ocorridas durante 2020 no Valle del Po, uma região do norte da Itália caracterizada por grande atividade industrial, mas também por ser a área da Europa onde ocorrem mais descargas atmosféricas a cada ano. Além disso, foi a primeira região europeia seriamente afetada pela COVID-19 e onde foram colocadas as maiores restrições à atividade humana. Em seu estudo, esses autores constataram que houve redução do número de aerossóis suspensos na atmosfera e também diminuição acentuada do número de raios entre os meses mais duros de confinamento, ou seja, entre março e junho. Em particular, eles descobriram que durante abril de 2020 o número de quedas de raios foi reduzido em um fator 10 em comparação com os anos anteriores. A Figura 1 mostra a redução na quantidade de gases emitidos pela população durante o confinamento.
Haveria, então, relação direta entre a COVID-19 e o número de descargas atmosféricas naquela região ou simplesmente pelo fato de as condições meteorológicas, independentes da atividade humana, não terem favorecido a ocorrência de descargas atmosféricas? Para responder a essa pergunta, Pérez-Invernón et al. (2021) usaram parametrizações de raio. Essas configurações são modelos “diretos” que os cientistas usam para prever o número de quedas de raios que podem ocorrer em uma tempestade com base nas condições meteorológicas. Por exemplo, algumas configurações prevêem o número de descargas atmosféricas com base na precipitação, outras o fazem com base na altura das nuvens, etc. Graças a essas parametrizações, os autores deste estudo constataram que 40% da redução na ocorrência de raios observada no Valle del Po durante os meses de confinamento não foi devido à meteorologia, portanto, pode ser atribuída à redução dos aerossóis medida por estações distribuídas por todo o vale. Outros cientistas também encontraram relações interessantes entre COVID-19 e relâmpagos no Brasil [Neto et al. (2020)] ou Índia [Chowdhuri et al. (2020)].
Esta conclusão é importante porque fornece novos dados sobre como os aerossóis desempenham um papel na eletrificação das nuvens e, de forma mais geral, sobre como a atividade humana pode ter um impacto às vezes difícil de prever na atmosfera e no clima. O que acontecerá com os números globais de relâmpagos à medida que a mudança climática continuar a avançar? E com os incêndios graves que os raios provocam nas florestas? Esperamos que o avanço da ciência nos próximos anos esclareça essas questões.
REFERÊNCIAS
Pérez-Invernón, F. J., Huntrieser, H., Gordillo-Vázquez, F. J., & Soler, S. (2021). Influence of the COVID-19 lockdown on lightning activity in the Po Valley. Atmospheric Research, 263, 105808.
Neto, O. P., Pinto, I. R., & Pinto Jr, O. (2020). Lightning during the COVID-19 pandemic in Brazil. Journal of Atmospheric and Solar-Terrestrial Physics, 211, 105463.
Chowdhuri, I., Pal, S. C., Saha, A., Chakrabortty, R., Ghosh, M., & Roy, P. (2020). Significant decrease of lightning activities during COVID-19 lockdown period over Kolkata megacity in India. Science of the Total Environment, 747, 141321.